sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Muitas vozes em uma zona de morte

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Recentemente li o - excelente! - "Vozes de Tchernóbil", da Svetlana Alexijevich e, a cada virada de página, foi necessário muito autocontrole para não sucumbir a tristeza tão pungente que ressoa do livro!

Apenas para contextualizar o momento histórico do livro, convém lembrar que em 26 de abril de 1986, durante um teste realizado no turno da madrugada, o reator nº 4 da Usina Nuclear de Tchernóbil (ou Chernobyl, já que assim sempre a chamamos no Ocidente) houve um acidente que resultou no incêndio da instalação e na criação de uma nuvem tóxica que impregnou, principalmente, a Belarus (ou Bielorrúsia) e a Ucrânia, condenando a população de diversos vilarejos à morte.

Mapa da zona de exclusão

Além disso, como conta a História, por razões eminentemente políticas, a contenção da nuvem radioativa que se formou e o apoio a população foi realizado, na falta de expressão melhor, de maneira muito precária: homens foram deslocados à zona do reator - sem proteção alguma ou com proteção ineficaz - para conter o incêndio e enterrar o rejeitos radioativos, enquanto moradores das redondezas da usina resignaram-se a esperar uma posição do governo, aguardando ou um aviso de que estava tudo bem, ou uma evacuação.
Nesse meio tempo, muito embora a exposição dos soldados e da população aos roentgens fosse sempre crescente, não havia sequer a distribuição de um mínimo de informação sobre medidas de prevenção e profilaxia à radiação:

"No primeiro dia, vimos a central nuclear de longe. No segundo já recolhíamos os resíduos à sua volta. Carregávamos os detritos em baldes. Usávamos pás comuns, varríamos o chão com vassouras como as que os zeladores usam para varrer os pátios" (p. 118)

"Aconteceu na noite de sexta para sábado. De manhã, ninguém suspeitava de nada. Mandei meu filho à escola, o meu marido foi ao barbeiro. Eu estava preparando o almoço, quando o meu marido veio correndo com as seguintes palavras: "Houve um incêndio na central atômica. As ordens são de não desligar o rádio". Até hoje tenho diante dos meus olhos o clarão cor de framboesa brilhante, o reator parecia iluminar-se de dentro". (p. 241)  

Pois bem.

A narrativa do "Vozes..." é crua: o livro é uma coletânea de relatos daqueles que sobreviveram ao "acidente" ocorrido no reator nº 4 da usina nuclear de Tchernóbil. E justamente por ser uma narrativa crua, a cada monólogo, a cada voz, é possível sentir como se fosse você (leitor) conversando com uma viúva, com uma velha senhora, com um engenheiro, com um liquidador, com uma criança... Então, de uma maneira única, o livro tem a capacidade de nos estimular a exercitar a empatia, levando a conclusão de que a humanidade além de extremamente semelhante, é muito frágil...

Outro ponto significativo do livro é a compreensão sobre a crença de um povo em um regime político: chega a ser aterrador ver depoimentos de homens e mulheres que - não obstante impregnados de radiação e, de certo modo, condenados a morte por doenças decorrentes da exposição exagerada a roentgens superiores ao tolerado - em momento algum se insurgiram contra a ordem soviética, contra a utopia comunista. Em vários relatos é dito "acreditávamos no Partido", "se algo fosse grave, seríamos avisados", "não havia guerra", "somos soldados, servimos nossa pátria em Tchernóbil"...

"A minha história...Fizeram o apelo e fui. Era preciso. Eu era membro do Partido. Comunistas avante! Era essa a situação." (p. 113)

"Agora o importante é esclarecer como vivemos. Nos primeiros meses, o medo dominou, sobretudo médicos e professores, ou seja, a intelectualidade; as pessoas mais instruídas deixavam tudo e partiam. Mas havia a disciplina militar. Tinham de apresentar as suas carteiras do Partido, e lá não permitiam que ninguém se deslocasse." (p. 169)

"Vozes de Tchernóbil" é aquele tipo de livro que "dá um tapa na cara" a cada virada de página: por meio dele é possível entrever a crença quase cega de um povo em um regime político que, senão imposto, ao menos apresentado com única opção viável.  As diversas "vozes" transmitem a fé inabalável de uma nação à terra em que muitos nasceram e foram criados, bem como demonstram como a ignorância de um fato (ou sobre um fato) custou a vida e a saúde de muitos.

O livro torna palpável a compreensão - ainda que mínima! - sobre o tão sofrido povo ucraniano, russo e bielorrusso e, principalmente, sobre o chamado "povo de Tchernóbil".

"Eis a resposta à sua pergunta: por que nós sabíamos e nos calamos? Por que não saímos à praça e gritamos? Nós relatávamos. Eu te disse que incessantemente fazíamos relatórios. Mas calávamos e nos submetíamos sem objeções às ordens por disciplina do Partido. Eu sou comunista. E nunca soube de nenhum dos nossos trabalhadores que tenha se assustado e se recusado a ir à zona. Eles seguiam para lá não por medo de perderem a carteira do Partido, mas pelas suas convicções. Antes de tudo havia fé de que o mundo em que vivemos é belo e justo, e de que o nosso homem estava acima de tudo, era a medida de todas as coisas." (p. 255)  

Simplesmente: leitura obrigatória!


Vista do reator nº 4, horizonte da cidade de Pripyat

"A recordação é uma coisa frágil, efêmera, não é um conhecimento exato, é uma suposição do homem sobre si mesmo. Isso ainda não é conhecimento, é apenas sentimento." (p. 55 e p. 56)




9 comentários:

  1. Excelente! Estou doida para começar a ler este livro!

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  2. Nat, seu texto é, simplesmente, sensacional, pois - além de contextualizar toda a história do livro - envolve e desperta em nós, leitores da sua crítica literária - o desejo de ler essa obra. Obrigada por compartilharseu olhar com a gente sobre esse livro, nos levando a um lugar incomum! Vc vai longeee!

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    1. Flávia, vindo de você esse é um elogio sem tamanho. Obrigada de coração. Beijos.

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  3. Natália adorei seu texto. Realmente a fé cega, não impota ser em um partido, regime politico ou em uma religião representa um perigo para humanidade. Fabio Vallim

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    1. Obrigada, Fábio. É exatamente o ponto: toda a crença cega é um perigo em potencial para a humanidade.

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